Há cerca de uma década, o neurobiólogo Rafael Yuste viveu o que ele chama de "momento Oppenheimer" ao descobrir que podia controlar a mente de camundongos ativando neurônios específicos com o uso de um laser. Inicialmente, Yuste ficou entusiasmado com o potencial da descoberta para ajudar pessoas com esquizofrenia, mas seu entusiasmo se transformou em preocupação ao perceber as sérias implicações que isso teria para os seres humanos. Ele percebeu que, em um futuro não tão distante, dados neurais de pessoas poderiam ser manipulados de forma semelhante.
Atualmente, dados neurais já estão sendo coletados de humanos, principalmente de jogadores e praticantes de meditação e vendidos a terceiros, afirmou Yuste em uma entrevista. Na ausência de regulamentações rigorosas, esses dados podem ser vendidos em larga escala, criando bancos de dados que contêm as “impressões digitais cerebrais” de indivíduos. Yuste, que é professor de neurociência e diretor do NeuroTechnology Center da Universidade de Columbia, alerta que estamos caminhando para uma possível eliminação total da privacidade. "O cérebro é o órgão que gera toda a sua atividade mental", explica ele. "Se você puder decodificar essa atividade, poderá acessar tudo o que você é seus pensamentos, memórias, imaginação, personalidade, emoções e até sua consciência e inconsciente."
Preocupado com a falta de proteção para esses dados, Yuste cofundou a NeuroRights Foundation em 2021, junto a um proeminente advogado de direitos humanos, com o objetivo de defender a privacidade neural. Desde então, ele tem trabalhado em parceria com legisladores em todo o país para promover regulamentações mais rígidas. Esses esforços já resultaram em vitórias importantes: no último sábado, o governador da Califórnia, Gavin Newsom, sancionou uma lei que estende as proteções de privacidade já existentes para incluir dados neurais, após aprovação unânime nas duas câmaras legislativas do estado.
Com essa nova lei, os consumidores na Califórnia agora têm o direito de solicitar, apagar, corrigir e limitar o uso de seus dados neurais pelas empresas. A Califórnia se junta ao Colorado, onde uma legislação semelhante foi aprovada em abril, quando o governador Jared Polis assinou a primeira lei do país a considerar dados neurais como "informações confidenciais" sob as leis estaduais de privacidade.
Yuste foi peça-chave na criação dessas legislações e está atualmente em conversações com legisladores de outros quatro estados para aprovar medidas semelhantes. Ele também desempenhou um papel importante na inclusão de uma cláusula sobre privacidade neural em um projeto de lei federal abrangente, apresentado pela senadora Maria Cantwell (D-WA).
A necessidade de regulamentação é urgente, segundo especialistas em privacidade. Grandes empresas de tecnologia, como a Apple e a Meta, já estão explorando formas de acessar dados neurais. A Apple, por exemplo, registrou uma patente para futuros AirPods capazes de monitorar a atividade cerebral dos usuários, enquanto a Meta está desenvolvendo um relógio inteligente com interface neural.
Além disso, várias empresas já coletam dados cerebrais e os compartilham com terceiros, de acordo com um relatório divulgado pela fundação de Yuste. Elas fazem isso inscrevendo consumidores em programas que utilizam capacetes de eletroencefalograma (EEG), tradicionalmente usados para diagnósticos médicos. De acordo com o relatório, uma das 30 empresas estudadas coletou milhões de horas de sinais cerebrais, e mais da metade das empresas vendeu esses dados a terceiros não identificados, que podem ser qualquer entidade inclusive forças militares estrangeiras, alerta Yuste.
Embora a maioria das aplicações atuais de dados neurais ainda seja considerada "de baixo nível", o campo está avançando rapidamente. Em dezembro, uma equipe de cientistas conseguiu decodificar os pensamentos silenciosos de um voluntário, abrindo portas para produtos que permitam aos humanos realizar ações, como fazer pesquisas no Google, apenas pensando.
Porém, a coleta, armazenamento e venda de dados neurais por empresas levanta sérias preocupações com a privacidade e possíveis discriminações, afirma Calli Schroeder, consultora global de privacidade do Electronic Privacy Information Center. Ela está colaborando com o Information Commissioner's Office do Reino Unido para elaborar diretrizes que ajudem as empresas a proteger melhor esses dados.
Alguns neurocientistas acreditam que os dados neurais podem ser tão individualmente identificáveis quanto uma impressão digital, disse Schroeder. A falta de uma regulamentação federal para o uso não médico desses dados já que as aplicações médicas são cobertas pela Food and Drug Administration (FDA) e pela HIPAA significa que as empresas estão livres para criar grandes bancos de dados de varreduras cerebrais de milhões de consumidores.
Esses dados, segundo Schroeder, podem ser usados para discriminar neurodivergentes ou pessoas com transtornos mentais, além de moldar campanhas publicitárias e até influenciar decisões de contratação ou concessão de empréstimos. "Há muitos usos preocupantes para esses dados e a maneira como eles estão sendo compartilhados é alarmante", disse ela. "O risco é alto."
Via - TRM
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